É fato que a relação do governo da nação com o judiciário está longe de seguir os canais normais desta legislatura. Aos problemas que, por uma razão ou por outra, se colocaram, como os projetos de modernização legislativa ainda não concluídos, a renovação do Conselho Geral da Magistratura há cinco anos, a rotulação ideológica dos juízes com base em suas decisões em conflitos de alta tensão, que nada tem a ver com críticas às decisões judiciais, está intrinsecamente ligada ao princípio democrático da liberdade de opinião; ou as tortuosas renovações parciais do Tribunal Constitucional, ainda que não seja o judiciário, Agora há o problema da remuneração.
Longe do que possa parecer, este último pouco tem a ver com uma situação de disputa trabalhista por melhores condições salariais, e muito mais com o respeito – ou desrespeito – à lei, que, honestamente, é um desrespeito compartilhado . por todos os governos que o foram até agora, há uns bons vinte anos, seja qual for a sua cor política. Estamos diante de um problema que transcende o simples trabalho para voltar a ser um problema institucional, de saúde democrática. Vamos ver.
A independência judicial, princípio consagrado no artigo 117.º da nossa Constituição, assenta nos juízes e magistrados, e não no seu órgão de governo, nem na função judiciária. E esta independência tem várias facetas, moldando o seu conteúdo, para além do mero princípio. O juiz, o magistrado, é independente e, para o ser, deve estar, tal como está, protegido das decisões dos demais poderes do Estado, inclusive do seu próprio órgão de governo; e os mecanismos de protecção são, a sua imobilidade, que garante que não podem ser separados, suspensos das suas funções, transferidos ou reformados, salvo por causa previamente prevista na lei. É independente, pois um extenso catálogo de proibições e incompatibilidades garante a sua dedicação exclusiva e exclusiva ao exercício da função jurisdicional. Deve ser assim.
E, como tudo na vida, a dimensão econômica ainda não pode faltar na existência de um judiciário independente. O artigo 402.º da lei orgânica da magistratura estabelece o dever do Estado de garantir a independência económica dos juízes e magistrados, diz, “mediante remuneração adequada à dignidade da função judiciária”. Assim, a dignidade do cargo exercido pelos juízes e magistrados é a medida da independência económica que o Estado deve garantir, enquanto dimensão fundamental da independência judicial.
Isso, que poderia exigir uma interpretação interessada por parte do autor destas linhas, também é afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, entre outros, em sua importante sentença da Grande Câmara de 27 de fevereiro de 2018, caso C-64/ 16, da Associação Sindical dos Juízes Portugueses e do Tribunal de Contas, bem, aliás, depois de indicar que a garantia da independência é inerente à missão de julgar, em total autonomia, sem vínculo hierárquico ou subordinação a terceiros, e sem receber ordens ou instruções de qualquer natureza, susceptíveis de influenciar as suas decisões, afirma que, tal como a estabilidade, a percepção de um nível de remuneração “conforme com a importância das funções que exercem constitui uma inerente garantia de independência judicial”.
Os juízes e magistrados também estão sujeitos apenas ao estado de direito, juntamente com os procuradores neste caso, em termos de remuneração, sendo a Lei 15/2003, de 26 de maio, que regula a nossa remuneração. Juízes e magistrados, que exercem função constitucional que dá conteúdo e razão de ser a um poder do Estadoestamos sujeitos a um plano de remuneração que nos equipara ao restante do serviço público, mas nos qualifica em relação a ele, blindando nossa estrutura de remuneração por lei, formando assim um regime jurídico complexo, muito pela cada vez mais oportuna e necessária autonomia económica e orçamental do Conselho Geral da Magistratura Judicial que este deve almejar.
A referida Lei impõe em seu primeiro dispositivo complementar. 3º, a existência de uma comissão, composta por representantes dos Ministérios da Justiça e da Fazenda, da CGPJ, da Procuradoria Geral do Estado, bem como de representantes das associações judiciárias e do Ministério Público, que se reunirá a cada cinco anos para adequar a remuneração dos membros das duas carreiras, judicial e fiscal, para efeitos da presente lei, que a Exposição de Motivos da mesma, se encarrega de definir e enumerar, tais como “o incentivo ao esforço, a estruturação da carreira judicial, a assunção de responsabilidade e o incentivo à formação e à especialização”.
Pois bem, em vinte anos de vigência da lei, referida mesa técnica, ou comissão, reuniu-se, com acordos, apenas uma vez durante o ano de 2008. A violação sistemática da lei durante quinze anos por governos de uma cor política e de outra é o que nos levou, infelizmente, a apresentar queixa na Justiça, a obrigar o Governo a convocar a mesa e a anunciar uma greve que, face ao presente recurso e à constituição, por fim, da referida comissão, e à existência de proposta concreta do Governo, nos levou a suspender o referido recurso. Foi somente quando fomos forçados a tomar essas medidas que o governo respondeu cumprindo a lei.
A carreira judiciária, como o país, mudou muito nos últimos vinte anos e tais mudanças devem impactar também a estrutura salarial dos magistrados. O governo não respeita a lei da remuneração variável -produtividade-, não dá respostas às diferenças no exercício das competências nos diferentes territórios, nem ao facto de o nível de vida de certas comunidades comprometer a dignidade do exercício do cargo, antes de determinadas remunerações que não tenham variado ou ajustado ao custo de vida durante todo este tempo. Necessariamente, deve ser empreendido o desenvolvimento de complementos, como a carreira profissional, que é reconhecida na lei das remunerações, e que deve contribuir para recompensar e estimular, conforme indicado na exposição de motivos, o esforço, a formação e a especialização. O desaparecimento das transferências forçadas, a impossibilidade de progressão vertical, o regime de substituições nunca resolvido, a perspetiva de aposentadorias em massa nos próximos anos, impõem a necessidade de uma reorganização, também económica, da carreira, que se confrontam, no por outro lado, com uma desorganização que desestimula e destitui de estímulos o exercício da função judiciária nos órgãos colegiados -os tribunais-. O pacote de remuneração dos guardas em geral precisa ser simplificado, e especialmente atualizado nos escalões de carreira inferiores, ajustando-se também ao grau de responsabilidade assumido na tomada de decisões e no exercício da função judicial.
Convocados novamente para 16 de maio, pela mão do Governo é que a suspensão da convocação à greve, se consolide em demissão. Desde então, A mesa não pode limitar-se a ser palco de uma simples ratificação dos projetos legislativos de um governo moribundo, que não poderá fazer avançar, e deve ser, para além de uma simples reivindicação salarial, o que não é, o quadro em que é assumida a tarefa de actualizar a estrutura remuneratória das duas carreiras, judicial e fiscal, para os próximos cinco anos, com base em um roteiro preciso, com cronograma e conteúdo definido. Nesta tarefa, o Governo contará sempre com a colaboração da Ordem dos Profissionais da Magistratura.
“Nerd de álcool. Leitor. Especialista em música. Estudante típico. Jogador irritantemente humilde. Especialista em zumbis. Solucionador de problemas sutilmente encantador.”